quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O som da "gravação"... afinal falamos de quê?

É muito comum, nos meios relacionados com o audio ou com a música, quando comentamos a qualidade de som e nos queremos referir ao conteúdo do disco (em vez do coitado do sistema), usarmos o termo "gravação" de uma forma demasiado generalista, associando-o erradamente a vários tipos de fenómenos sonoros, o que por vezes pode induzir equívocos nas conversas, porque o assunto é bastante mais complexo e, especialmente, porque a gravação propriamente dita sendo um dos factores que determinam o resultado sonoro final, provavelmente perdeu grande parte do seu peso no longo percurso da Produção Audio a que a maior parte dos discos são submetidos. Na verdade, com as habituais excepções, a gravação até costuma apresentar poucos problemas, sendo que estes aparecem com uma muito maior frequência noutras fases da produção. Não faz sentido falar de "gravação" quando de facto, e na esmagadora maioria das ocasiões, nos devíamos estar a referir à Masterização.

CAPTAÇÃO / GRAVAÇÃO - EDIÇÃO / MISTURA - MASTERIZAÇÃO

Tipicamente podemos falar de uma fase de Captação e Gravação, quando o som produzido em estúdio ou ao vivo é captado por um ou vários microfones, e registado "em bruto" num suporte normalmente separado em pistas, ao que se segue uma fase de Edição e Mistura das várias pistas gravadas (instrumentos, vozes, ou outros sons) numa unidade coerente, com posicionamento correcto nos canais disponíveis e de acordo com os objectivos artísticos ou de produção, além da eventual adição de efeitos de reverberação, eco, distorção ou outros, e finalmente a Masterização em que não se trabalham as pistas, mas sim as faixas já misturadas, e a sua finalidade é garantir que o som do "mix" final não se perde na transposição para o "media" (CD, Vinil, SACD, DVDA, BD, etc), mantendo a sonoridade pretendida pela produção ou pelo artista da melhor forma possível, garantindo que não existem disparidades indesejadas no volume entre faixas, que a equalização está adequada, e que a sequência de faixas está correcta bem como o seu espaçamento e "fade-in/fade-out" entre elas, no início e no fim do disco. Normalmente é na fase de Masterização que se aplica a famosa compressão dinâmica que tanto tem prejudicado esta indústria e os seus consumidores, pois é nesta fase que se "adequa" o volume geral do disco ao fim que lhe está destinado.

Por vezes existe alguma sobreposição entre as fases de Mistura e de Masterização, sendo que algumas das tarefas atribuíveis a uma ou a outra podem trocar de posição e depende muito de cada projecto específico e da metodologia adoptada, no entanto a mistura de pistas e sua configuração em termos de disposição no "palco sonoro", a criação de faixas musicais propriamente ditas, é sempre exclusivo de um processo de Mistura, e a transposição do "mix" para o "media" final que servirá de base às cópias vendidas no mercado é sempre exclusivo de um processo de Masterização. Poderiamos pensar que a Masterização não passaria de uma transposição de um formato audio para outro (analógico para digital, por exemplo, ou de "tape" para vinil), mas não é isso que de facto acontece pois durante a Masterização são realizadas operações de manipulação de volume, filtros de ruído, limitadores e compressão, cujo impacto se pode tornar esmagador para o som que o disco (ou outro media) vai ter. A própria manipulação do mix, a sua transposição entre formatos e a sua passagem por consolas e conversores, implica uma situação de compromisso técnico que normalmente resulta em perdas de qualidade, e há muitas formas diferentes de lidar com isso obtendo diferentes resultados. O Mastering Engineer é um artista, por vezes um cientista também, que pode fazer maravilhas, ou aberrações... nas suas mãos está um poder enorme sobre o som que vai chegar ao grande público.

Voltando à importância de usar os termos correctos, quando falamos em gravação, estamos a abordar o tema de uma forma incorrecta, mesmo que apenas na terminologia, porque dá a entender que o resultado sonoro é determinado por uma fase de captação/gravação que, sendo sem dúvida importante, não é normalmente aquela onde se encontram os maiores problemas, mais audíveis e intrusivos, nem é normalmente a mais determinante para o som do "produto" final.

Na verdade, a gravação pode ser complexa, com a escolha dos microfones e a sua quantidade/posicionamento, ou a atribuição de pistas, mas após essa escolha técnica, o som captado e gravado não está ainda danificado, tipicamente nesta fase o som gravado tem muita qualidade, está em "bruto", não sofreu ainda perdas excepto aquelas inerentes aos próprios microfones e outro hardware relacionado com a captação e gravação.


Onde realmente se vão executar as tarefas que podem determinar a qualidade de som de um disco, é nas fases seguintes, de Mistura e Masterização. Nestas fazem-se alterações e ajustes ao som gravado originalmente que podem resultar muito bem, ou muito mal, e mesmo quando o material gravado tem algum raro problema, nesta fase isso pode normalmente ser corrigido com facilidade. Desde a compressão dinâmica, à equalização, ou às técnicas de redução de ruído para eliminar o sopro de fundo normalmente chamado de "tape hiss", entre muitos outros procedimentos relacionados com filtros e efeitos de vários tipos, analógicos ou digitais, as ferramentas ao dispôr do Mastering Engineer são muitas, poderosas, e o sucesso da sua utilização depende principalmente do bom gosto da produção.

Por questões de ordem técnica, e mesmo históricas, a maior parte das operações com impacto sonoro a que normalmente chamamos "qualidade da gravação", estão posicionadas ao nível da última fase, da Masterização propriamente dita, já depois da fase de Mistura. Quando um disco nos soa agressivo, ou amorfo, ou achamos que um certo intrumento ou voz estão mal equalizados, ou que o som está muito alto/baixo, ou que o palco sonoro é profundo ou do tipo "parede de som", estamos na verdade a falar sobre a Masterização, e não sobre qualquer aspecto relacionado com a gravação sonora. São as operações executadas durante as fases de Mistura, e principalmente de Masterização que conferem uma sonoridade e uma dimensão ao material gravado, que antes dessa fase não existem. Se ouvirmos as pistas antes deste trabalho, o resultado será bem diferente daquilo que ouvimos já depois da fase de Mistura. E quando ouvimos, precisamente o mesmo material, depois da Masterização, mais uma vez vamos ouvir algo muito diferente. A evolução sonora entre aquilo a que chamamos de Gravação e o resultado de todo um percurso de Produção Audio é enorme, a gravação original pode quase ser irreconhecível.

Isto explica porque é que, muitas vezes, existem várias misturas e masterizações para a mesma gravação original, não raras vezes com sonoridades muito diferentes apesar de usarem a mesma "matéria prima". Há casos famosos de obras que foram masterizadas dezenas de vezes, cada uma delas com um som diferente, e que circulam pelo mercado ao longo dos anos em dezenas de edições em CD diferentes, mais as edições em vinil e as de SACD/DVDA, compondo "ramalhetes" sónicos por vezes difíceis de perceber e de se chegar a consensos sobre qual a versão que melhor representa as tapes originais ou as intenções do artista/produção... o "tal som" original.

Por tudo isto, já sabe, da próxima ocasião em que queira comentar a qualidade de som do disco que está a ouvir... fale da Masterização (ou eventualmente da Mistura), pois é este o momento da produção do disco que lhe conferiu a sonoridade e o tipo de apresentação sonora, que faz de um disco muito bom, ou muito mau... "or something in between".

(neste post, propositadamente, deixei de fora as problemáticas e complexidades associadas aos processos de conversão analógica/digital que estão associados à masterização audio, tema que será abordado noutra ocasião e num âmbito mais alargado)


www.VinylGourmet.com - Discos de Vinil / Edições Audiófilas

3 comentários:

  1. Acho que não se deve minimizar a importância da fase de captação sonora no resultado final.
    Quando se trata de conjuntos instrumentais e/ou corais vastos (da ordem das muitas dezenas ou mesmo centenas de intérpretes) captados em locais que podem não ter sido concebidos para o efeito penso que a captação de som pode ser muito complicada.

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  2. Ora boas :)

    Certamente, não queria dar a entender que a gravação, tal como a descrevi, não tem relevância, e creio que o texto que escrevi não estava a ajudar muito pois dava a entender isso de alguma forma.

    A gravação é uma arte extremamente complexa e os seus principais artistas fizeram-na de formas muito diferentes e inovadoras com resultados, por vezes, surpreendentes.

    Já fiz algumas correcções ao texto original deste post para tornar a minha mensagem mais clara, que vai no sentido de ajudar a clarificar conceitos, de divulgar a ideia de que os principais problemas sonoros que nos são apresentados resultam muito mais de outras fases da produção audio (mistura e masterização), e a lembrar os ViciAudios de que existem muitos trabalhos de masterização de qualidade muito diversa, e que esse deve ser um ponto a que se dá tanta importância como aos outros aspectos "audio" que tanto tempo, neurónios e $$$ nos ocupam.

    Obrigado pela chamada de atenção, pois tens toda a razão, a captação do som é muito importante e se for mal feito, de forma muito "grotesca" (felizmente é raro que isso aconteça), pode arruinar completamente o trabalho, para além de qualquer recuperação possível na consola de mistura...

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